Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
Hoje andei particularmente feliz ao ler um "sem número" de vezes este poema - sem dúvida um dos meus predilectos de Camões. Todos os anos, quando chega o momento de dar a conhecer a lírica de Camões aos alunos, é uma festa para o meu espírito. São semanas felizes, trabalho sem trabalho, feito só de prazer de leitura, de leitura de prazer. E penso sempre ao reler este poema (e tantos outros): Que novidade poderá ser escrita pelos novos poetas perante um amor assim dito, nestas palavras desmesuradas de tensão e, simultaneamente, contidas em sílabas certamente contadas pelos dedos? Palavras nuas, palavras sóbrias para um amor, que como verdadeiro amor, não cabe no peito de quem o sente.
Apaixona-me a forma servidora (tal como na poesia trovadoresca) de como o poeta se refere distanciada e respeitosamente à mulher - "minha Senhora" - e ao mesmo tempo se vincula no humanismo renascentista de que afirma o seu sentir, tenso e exacerbadamente inquietado pela dúvida do "sentir-se enganado pelo seu sentir"... Conflui ainda no poema um modo maneirista de viver o amor, pelo exagero da hiperbole e do paradoxo. E é simplesmente incrível como um sentimento descrito em pleno século XVI é a mesma matéria, a mesma língua, a mesma expressão final do século XXI. Hoje, durmo mais apaixonada.
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