sábado, 2 de outubro de 2010

CARTAS A SANDRA - VERGÍLIO FERREIRA

Para ti Caridee, que conquistas com as tuas palavras tudo o que desejas... Deixo-te uma carta literária,  das mais belas que conheço, desta vez da literatura portuguesa e do autor que tanto gosto de ler porque nunca se esgota. Transcrevi o início da carta (e do livro) e o final da primeira das dez cartas que Paulo escreve a Sandra (equivalente ao final do primeiro capítulo deste romance epistolar).Espero que sintas o prazer que a sua poderosa escrita sobre o amor desperta aos nossos olhos. Aqui vai, lê-a como se fosse também para ti, depois de passares a velhice e a vida: 


Sandra. Hoje a obsessão foi mais forte. Escrever-te. A nossa história que contei parecia-me intocável. Princípio e fim de nós nela, a tua morte selara-a para sempre. E todavia é nessa eternidade que a tua memória me perturba e a imagem terna do teu encantamento. Deves talvez lembrar-te de que nunca me escreveste. Mas eu escrevi-te algumas vezes quando vinha a férias e a emoção era demais. E um dia perguntei-te se tinhas guardado essas cartas. Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo. Rasguei-as, naturalmente, disseste, e porque havia de guardá-las? Gostava de as reler, de as ter, disse eu. Para recuperar o que fui nelas e o que houve nelas de ti. Que tolice, disseste ainda, a adolescência passou.



E, no entanto, nesta casa vazia e enorme, no silêncio da Terra que me aturde, é essa adolescência que regressa, e com ela a tua fala séria e  doce. Escrever-te. Possivelmente irei fazê-lo mais vezes até ver se no escrever se me esgota a tua fascinação. Tenho algumas fotografias tuas, mas o que procuro nelas não está lá. E é decerto por isso que raramente volto a vê-las. Porque tu nunca foste real para eu te poder amar. E é essa irrealidade amada que estremece na minha comoção e no êxtase leve de te imaginar. Podia no entanto lembrar-te em tanta situação da vida que nos coube. No dia em que a Xana nasceu. Numa praia iluminada do Sul. na noite em que conheci a ternura do teu corpo. Na tarde em que me disseste sim, podemos experimentar. Nos intervalos da nossa monotonia que também houve. No difícil da vida para ela se cumprir toda. Na tua morte. Escrever-te. Escrever-te. Talvez te  conte do muito que não contei e tu me não digas que tolice. Mas por sobre tudo o que poderia lembrar, há uma imagem obsessiva de ti e é a que sempre se me levanta ao incerto da evocação. Na realidade nunca te esqueço no dia a dia que te esquece. Mas ficas um pouco ao lado, à espera de que eu volte de novo a olhar-te. É uma imagem fluida e intensa, essa que se me ergue sempre, e eu penso que possivelmente é a de quando te vi pela primera vez. Mesmo que não fosse a primeira e que estivesse então distraído do meu amor que passava em ti. Eu estava sentado com outros colegas num murete do jardim da Faculdade.. E a certa altura tu irrompeste de algures, do impossível, talvez afinal da tua casa que eu soube mais tarde que ficava ao pé. E o que se fixou na lembrançae imediatamente me aparece ao vaguear da evocação foi o movimento em filigrana da tua anca subtil, o aéreo do teu passar no teu equlíbrio frágil, a tua face doce e triste. E então imobilizo-te antes de a aragem te levar, para te ver bem.E assim te fixo a coxa fina, suavemente modelada pelo teu vestido, o pé à frente, firme e delicado. Verdadeiramente não sei bem o que o tempo me filtrou. É Outono, está sol, e há ainda no ar uma memória de Verão. É assim possível que tragas um vestido leve, provavelmente com o teu casaco solto de xadrez que te descia um pouco abaixo do joelho. Mas não e dá jeito lembrar-te assim.  Talvez porque o teu vestuário flutuante não deixe traçar a modulação do teu corpo. E eu sinto-a ainda no lineamento do teu passar. Trarás por isso talvez um casaco justo, escuro e comprido, para existir sob ele o teu ondeado gentil. Mas quero dizer-te que ao lembrar-te não és só tu a existires. Há a cidade solar que te envolve e eu vejo sem a ver quando vens à minha lembrança. E kmais alto, como um esplendor, o eco de uma balada. E tudo isso és tu, minha querida. A tua intocável beleza, e o espaço e a melodia em que ela se inscreve. (...) 
A tarde apaga-se lenta, a Deolinda deve estar a vir aquecer-me o jantar. E eu suspendo a obsessão de te dizer todo o maravilhoso de ti, antes de te imaginar a breve ruga na face e ouvir-te dizer que tolice. Não digas. Se te sentasses aqui à braseira. E se te demorasses comigo um pouco e olhássemos em silêncio a grande noite que desce. Em silêncio. Não te dizer mais nada. E tomar-te apenas a tua mão franzina na minha. E sorrires.

Paulo


Para saberes um pouco mais sobre este livro:http://www.infopedia.pt/$cartas-a-sandra

2 comentários:

Caridee disse...

Muito obrigada :) se soubesse a minha felicidade quando aqui cheguei e vi este post, como é possível um simples gesto fazer tanta diferença...
Senti cada letra, cada sílaba, cada palavra como se também para mim se tratasse, e n a li apenas uma vez, li várias para tentar absorver o máximo que a carta tem para me oferecer. Realmente uma carta consegue transmitir sentimentos que mais nenhum tipo de texto consegue, isto na minha tão humilde opinião (sou fascinada por cartas)

Bjinho

Anónimo disse...

Muitas mais cartas se seguirão. Fica prometido.Bjinho

Patrícia