segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A ESCRITA DE AGUSTINA BESSA-LUÍS

       Para que leias, linda amiga, como a escrita de Agustina é luminosa, trazendo com ela (sempre de mão dada!) a aparente simplicidade das coisas...este é um excerto do romance histórico Adivinhas de Pedro e Inês, que reabre um novo espaço literário na recriação (original) da trágica e bela história de amor portuguesa de todos os tempos, imortalizada por Camões n' Os Lusíadas bem como neste romance histórico tão encantador. Neste excerto, a narradora descreve, desta forma tão sensitiva e surpreendente, a Quinta das Lágrimas, a qual - confessa - quase foi comprada pelo seu pai.

Experimenta em voz baixa mas convicta da magia do som destas palavras:

 «Era numa tarde muito quente, em Maio. O calor de Maio, em Coimbra, traz no coração o perfume da tília em flor; desde o alto do Jardim da Sereia ele abate-se até ao fundo da cidade como um lenço abafante e suave. É um calor e um perfume que deprimem. Acompanham os estudantes quando eles revêem a matéria, fumando com gesto irritado e deixando o olhar parar nas varandas da frente onde outros estudantes mourejam nas páginas das sebentas.
        Mas, voltando à Quinta, que está num vale sem horizontes, que seriam dantes os fecundos campos de regadio, com manantes a visitar-lhe os muros para roubar capôes e melancias: estranhei-a, de tão deserta. Não havia um só visitante, ou um morador; e não vi também guardião. Só um cãozito sujo, de pêlo em que a lama secara, me lançava de longe alguns ladridos curtos, sem cólera, por simples obrigação.
        A casa não tinha cortinas nem vestígios de ser habitada. Havia, em volta, alguns canteiros onde crescera a beldroega e umas açucenas tão altas que podiam chamar-se o bordão de S. José. Na parede, uma mancha de água que se infiltrara pelo telhado parecia a sombra de uma mulher; uma mulher alta e corpulenta, que risse, os ombros deitados para trás. Ouvi, ou pareceu-me, um arrastar de passos, mas durou pouco; tudo ficou silencioso outra vez. Porém, quando eu já me afastava vi, sentada numa velha cadeira de verga, uma senhora ainda nova, com uns óculos na mão direita e que olhava para mim com uma frieza condescendente. Se era a dona da casa era uma excêntrica, porque estava vestida com uma saia cor de ferrugem, tendo por cima um vestido verde, aberto, e um cinto dourado. Os cabelos usava-os soltos e eram de um belo loiro carregado com reflexos mais claros sobre as orelhas. O rosto era rosado, mas notava-se que usava carmim, muito fino e brilhante. Estendeu as pernas com um movimento preguiçoso; estavam nuas e eram tão brancas como o ventre das trutas. Até certo ponto parecia muito uma lavradeira abastada, dessas do Alto-Minho que se descalçam ao fim das tardes de Verão para ir regar, [...]  .»

 
Agustina Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês, Guimarães & Cª Editores, 1983, pp.7,8

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