Relativamente ao JL que me trouxeste cá a casa, como um bolo com uma cereja espetadinha no centro, tenho a dizer-te que sempre desconfiei que o chantili que traria no meio teria poderes curativos e...não me enganei. Já há muito tempo que não lia uma entrevista com respostas que provocassem tanto prazer e espanto. Serviu para conhecer melhor esse autor que tanto se esconde e para saber (isso foi quase mau!) que por mais que tente vertiginosos elogios ou arrebatações panegíricas sobre Uma Viagem à Índia, o livro que comecei a ler e me custa o virar das páginas, não conseguirei nada de novo pois a crítica literária acerca deste texto é uma vénia descontida, uma declaração descarada da eternidade desta epopeia pós-moderna portuguesa. Retalho algumas respostas do autor para as releres, agora, que o JL já não é teu:
«Antes de fazer o que quer que seja curvo-me perante as centenas de coisas extraordinárias que já foram feitas. Ás vezes temos a ilusão de estar a começar. Mas temos obrigação de conservar a memória. E não como se trabalhássemos num museu. Gosto muito daquelas imagem dos ciganos que , em séculos passados, deixavam uma maçã num cruzamento para assinalar a estrada onde viravam. Assim a carroça saberia ler esse sinal. Quando escrevemos temos que ter a noção que não somos a primeira carroça, nem a última. Temos de estar atentos aos sinais que nos deixaram, e depois deixar as nossas próprias marcas.»
«Procuro sempre uma linguagem limpa, quase bíblica. O que me interessa é encontrar hoje uma frase nova que seja antiga.»
« ...ter n' Os Lusíadas uma espécie de mapa. Que me ia indicando: agora para a esquerda, agora para a direita, agora uma montanha, agora um tumulto. Não havia uma história que queria contar. O protagonista ia seguindo esse mapa, às vezes de uma forma completamente distinta.»
« Há um grau de liberdade que tem a ver com o imaginário e com a vontade de tudo ser possível numa frase. E essa estrutura obriga a uma contenção. O resultado de Uma Viagem à Índia tem a ver com essas duas forças, liberdade e constrangimento.»
« (...) Porque pensamos muito os mapas como cartografias exteriores. Vamos de Lisboa a Paris, de Paris a Londres. No meu mapa vamos do Tédio a Praga, de Praga para o Divino, do Divino para o lixo, do Lixo para Paris. Para mim, as viagens são um cruzamentoentre coisas exteriores e o que acontece na nossa cabeça.»
«Talvez o tédio seja a alternativa contemporânea. Se pensarmos em heróis do século XXI, uma das possibilidades é estarem entediados. Para um herói este século tornou-se desinteressante. E os obstáculos, adversários e tesouros pouco estimulantes.»
«(...) Veremos o perigo mas sempre com uma vitrine à frente. Estaremos a cinco metros da dor mas nunca a sentiremos, o que decorre da tecnologia. O mundo está transformado numa espécie de hospital global em que a preocupação principal é eliminar a dor e o perigo. É engraçado pensar que há quase um mapa com os locais onde se pode ser herói. Antigamente bastava ao herói avançar para encontrar os dragões e as damas em torres a pedir ajuda. Hoje só se deparará com segurança. O tédio é uma consequência natural.»
« O importante é encontrar a nossa mão esquerda. Variar quando percebemos que somos hábeis num registo. (...) Claro que há escritores, que eu respeito, que escrevem sempre o mesmo livro mas um pouco melhor. Eu tento sempre fazer percursos diferentes, embora estranhamente sinta que estão ligados entre si.»
« «(...) É como aquela imagem, n' As Cidades Invisíveis, em que as casas estão ligadas por fios de várias cores. Entre os livros há vários fios. E alguns, como o Água, Cão, Cavalo, Cabeça, são caminhos possíveis que me interessa continuar.»
« A epopeia é um género extraordinário. (...) Porque é possível encontrar coisas deslumbrantes e com uma modernidade total numa escavação.»
« Quando olho para um acontecimento o que tento ver é o núcleo. Não os dados mais superficiais ou as datas, coisas que se calhar perdem rapidamente a actualidade.»
«(...) Acho óptimo os livros não serem marcados no tempo. Não gosto muito da noção de que quando saem, as semanas seguintes é que são importantes. Isso é uma ideia contra o livro.»
« A noção de últimas notícias não tem necessariamente a ver com os livros. A literatura é um tempo paralelo.»
« (...) o meu olhar é mais literário. Olho muito à distância, vendo o contorno, a mancha, o tumulto, o som. (...) Gosto mais da ideia de reparar.»
« Reparar é parar muito tempo e tem simultaneamente em português o sentido de pôr em funcionamento alguma coisa que está avariada. Reparar também é descentrar. Não olhar o centro, mas as periferias, o pormenor. Há muita gente a reparar no centro. O trabalho literário é reparar no caixote do lixo que está escondido. Sobretudo, gosto da ideia da literatura enquanto ciência individual.»
« Por mais paradoxal que possa parecer, pois a ciência tenta sempre distribuir colectivamente o seu conhecimento. Mas há uma investigação que me interessa muito em termos literários. E está relacionada com a metodologia. Se eu sair à rua com um martelo o mundo transforma-se em algo martelável. Só estou a pensar em coisas que podem ser marteladas. Se em vez disso sair com uma chave de parafusos, parecer-me-á que o mundo é aparafusável. Os instrumentos que usamos mudam a nossa percepção. Agrada-me ter uma caixa de ferramentas variada.»
Como vês, perante estas respostas não interessam as perguntas, não achas?
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