sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A FILHA DA BEATRIZ - JUAN JOSÉ MILLÁS

Há muito que queria que lesses este pequeno conto de Juan José Millás, tão directo quanto ao direito à primazia da literatura canónica. Está cheio do seu humor característico, este "nuestro hermano"  provando mais uma vez que é fácil transformar as fantasias em realidade como o costuma dizer. Ora lê:

«Na sexta-feira passada, Dia do Livro, estava a comer uma sanduíche de lulas num bar da Rua López de Hoyos, quando se aproximou uma jovem de cabelo ondulado e saia de xadrez que parecia muito mais vir da minha adolescência do que da rua. Trazia na mão um livro de Paulo Coelho no qual, segundo me disse, acabava de ler que o mundo está cheio de sinais.

- Apercebi-me – acrescentou – de que comes o pão como se, mais do que mastigá-lo, o pensasses, tal como fazia o meu pai morto.

- Pois estou-me a cagar para o Paulo Coelho e para o teu pai morto – respondi eu sem agressividade. – Não falo com ninguém cujas citações literárias não sejam de Shakespeare para cima.

- Isso também era típico do meu pai – respondeu ela com doçura -, desprezar aquilo que ignorava. Podes estar a cagar-te para ele tanto quanto queiras, mas deixa o Paulo Coelho em paz.

Dei-me então conta de que o mundo estava realmente cheios de sinais. Aquela rapariga recordava-me uma namorada da minha adolescência chamada Beatriz, um nome um bocado estranho para a época, dominada pelas paquitas, as julias e as marujas. Talvez, pensei, estava a dizer-me alguma coisa vinda do passado. Estou a andar pela rua de Constancia, em direcção ao colégio, e, subitamente, vejo aparecer de frente a Beatriz, que vai para as aulas de estenografia e dactilografia. Talvez seja um pouco cruel exigir uma citação de Shakespeare a alguém com uma bagagem cultural tão escassa. Ao fim e ao cabo, eu tropecei com Shakespeare por acaso e nem sempre consigo compreender o que diz. Faltou-me uma unha negra para ficar pelo Paulo Coelho: talvez o tivesse preferido na condição de que Beatriz permanecesse ao meu lado. Agora seríamos os dois velhos e veríamos televisão e leríamos juntos Paulo Coelho. Os nossos filhos encheriam a casa de livros de auto-ajuda e teríamos encontrado para a vida um sentido coelhiano. Dito assim, soa bem, melhor do que sartriano ou Wittgensteiniano.

Falando de Wittgenstein, lembrei-me de um livro muito importante da minha juventude: La Viena de Wittgenstein. Se me tivesse casado com a Beatriz, talvez eu pudesse ter escrito El São Paulo de Coelho. Não sei, nunca se sabe o que é importante e o que não é. Dei um gole na cerveja, mordi o pé de uma lula que se escapava pela ferida aberta do pão e lancei um olhar amável à rapariga.

- Olha – disse-lhe eu -, não quero incomodar-te, mas o Paulo Coelho escreve muito mal e é um farsante. Além disso, não acredito que o mundo esteja cheio de sinais. Mais precisamente, peca pelo contrário: por falta de sinalização. O mundo é pior do que o aeroporto de Frankfurt: todas as indicações estão lá postas para nos confundirem, para apanharmos o voo errado ou para ficarmos presos no labirinto dos seus corredores.

- Mais uma razão para que quando apareça um sinal nos agarremos a ele, e já disse que és parecido com o meu pai.

- Pois não é para dar razão ao Coelho, mas tu és igualzinha a uma rapariga por quem estive apaixonado na minha adolescência. Igualzinha, igualzinha. Se calhar, és filha dela. Chamava-se Beatriz.

- Não continues – respondeu a rapariga, empalidecendo. – A minha mãe chama-se Beatriz, mas tenho medo de que se continuares a falar não se trate dela, gostando eu tanto dos sinais do destino.

Eu também tive medo de indagar, não fosse romper-se a magia, salvo seja. Nunca teria podido imaginar a Beatriz viúva, com a roupa interior preta e tudo isso. Eu continuava solteiro por preguiça. Talvez nenhuma mulher tivesse insistido o suficiente, mas de repente pensei que se a Beatriz era viúva e ainda sentisse alguma coisa por mim, eu estaria disposto a casar-me com ela, ainda que a filha lesse o Paulo Coelho. Pessoalmente, eu caíra caira no ano anterior no desvario de ler Susanna Tamaro.

- Quero casar-me com a tua mãe – ouvi-me dizer com decisão, ao mesmo tempo que pagava a cerveja e a sanduíche de lulas.

- Mas se nem sequer sabes se é a Beatriz da tua juventude.

- Não interessa – respondi. – Se isto é um sinal, não quero deixar de o ler. Dá-me pânico passar a vida num aeroporto à procura do posto de informações. Leva-me a ela. Serei como um pai para ti.

Isto é o que realmente imaginei, e sem dúvida o que devia ter feito, mas não tive coragem de atraiçoar Shakespeare em favor de Coelho. Entre a literatura e a vida, escolhi sempre a literatura, e vejam-se os resultados. A rapariga abandonou o estabelecimento à procura de outro sinal e quando eu saí ela já tinha desaparecido.»

Juan José Millás, Os Objectos Chamam-nos, pp.130, 131, 132

1 comentário:

Anabela disse...

Doçura
Ri-me muito! Que espanto!!!!
Haveria tanto a falar sobre este excerto! Mas ele coloca o dedo bem na ferida: há pessoas que vendem porque vêem sinais e as pessoas, crédulas, deixam-se levar por esse tipo de misticismo barato mas que é vendável!!!! Veja-se a tiragem desse autor!!!!
Ãdorei a alusao que faz à possível filosofia coelhiana!!!!!! Genial!!!!
Adorei doçura...
Beijos