«Enquanto se fazia a chamada, eu treinava a esquecer-me de mim em sentido e a não separar uma da outra, a inspiração e a expiração. E a rolar os olhos para cima, sem levantar a cabeça. E a procurar no céu o canto de uma nuvem em que pendurar os ossos. Quando já me tinha esquecido de mim e encontrado o cabide celestial, ele segurava-me.
Muitas vezes não havia nuvens, só o mesmíssimo azul, como um lago sem fim.
Muitas vezes as nuvens corriam e não havia um cabide que ficasse quieto. Muitas vezes a chuva ardia nos olhos e colava-me a roupa ao corpo.
muitas vezes o gelo corroía-me as entranhas.
Nesses dias, o céu revirava-me o globo dos olhos para cima, a chamada puxava-os para baixo e os ossos penduravam-se constantemente só em mim.
O capataz dos deportados, o kapo Tur Prikulitsch, circulava empertigado entre nós e o comandante Chichtvanionov, as listas listas deslizavam-lhe pelos dedos, amarrotadas de tanto folhear. Todas as vezes que chamava um número, o peito dele sacudia como nos galos. Ainda tinha mãos de criança. As minhas mãos tinham crescido dentro do campo, quadradas, duras e rasas como duas tábuas.
Quando algum de nós, depois da chamada, se enchia de toda a coragem que tinha e perguntava a um dos natchalniks, ou mesmo ao comandante de campo Chichtvanionov, quando poderíamos voltar para casa, diziam lacónicos: SKORO DOMÓIE. Significava: Em breve partem.»
pp.29, 30
3 comentários:
E aqui estou eu, mais uma vez a escrever o que muito provavelmente virá a ser um comentário com um tamanho considerável, porque eu posso não falar mt, mas posta a escrever é difícil parar :)
Quando nos apresentou esse livro fiquei bastante interessada, não só por se tratar do facto de a autora ter sido premio Nobel mas também por falar sobre a 2ªGuerra Mundial. Já li um número considerável de livros que retractam essa época, é certo que por vezes chego a sofrer ao lê-los, mas é um tema que me desperta bastante atenção.
Adorei o excerto que li, tendo como único pensamento poder ler o resto do livro.
Bjinho
Ainda bem que sofres. Quando a literatura nos abala, crescemos como pessoas (no nosso caso não era bom ficarmos mais altas!!!). Quando acabar de o ler, ficà à disposição. Bjinho
Patrícia
Amiguinha do coração
De facto a escrita da Herta é de uma beleza invulgar e repleta de poesia... pendurar os ossos numa qualquer nuvem é uma imagem fortíssima... quantos de nós em situações de crise, mas de menor intensidade!!!, o desejam! Essa leveza ou quase suspensão etérea é de uma beleza estonteante!
Obrigada pelo magnífico trecho que colocaste, com a sabedoaria e sensibilidade que tão bem te caracterizam , minha amiga do coração... bjs
Anabela
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