Sempre me deixei impressionar pelas dissimulações descaradas dos escritores ao tomarem nos seus escritos literários a voz de um outro. Esse grau de distanciação fantástica que a separa (muito ou pouco) da voz autoral, por si só, já torna, para mim, um texto literário num texto interessante. Por isso adorei deparar com esta temática no texto ensaístico de Alberto Manguel a que deu o título "A voz que em literatura diz «eu»", publicado na Ler deste mês. Sempre valeu a pena comprar a revista...
Também a mim me encantou a literatura em tenra idade por querer ver até que ponto o escritor era capaz de "mentir" num pressuposto artístico. Gostava sempre muito daqueles que se distanciavam do eu de forma exagerada pois antevia na escrita a possibilidade inteligente de representar outros papeis, de experimentar vidas, supremas ou desgraçadas, e sentir naquelas palavras a capacidade desses mesmos escritores se transformarem. Como o demonstra o conto de Henry James, A coisa propriamente dita, aprecio a capacidade transformativa dos artistas, nomeadamente daqueles cuja arte depende da palavra e do gesto. Ser outra coisa que não aquilo que somos (ou nos habituamos a ser) é fascinante... a literatura prova bem isso. É também ideal o modo como através do universo literário andamos atrás de nós próprios (tanto quando leio como quando escrevo), à procura das emoções que nunca tivemos, à procura de uma identidade que não nos pertence até a esse momento. Lembro-me a este propósito de Oscar Wilde e do que disse sobre a pintura e, mais concretamente, o retrato. Assim testemunha que os retratos que são pintados com emoção são retratos do artista e não do modelo que o serviu. Aquele que o artista pintou tão cheio de sentimento não é quem ele observou, não, mas sim o próprio artista que se revela. Concordo plenamente com Wilde pois mesmo descrevendo aquilo que não sinto, parto do que sinto, projectando o seu inverso. Quando em palavras me delicio com algo repugnante, parto sempre do belo, aliás, do meu conceito de belo até chegar ao extremo antitético daquilo que me fascina. Qualquer voz que simule, que distancie da minha (esticando a minha capacidade de mentir até ao limite como um elástico...), mete em evidencia tudo o que sinto, mesmo quando não me pareço comigo própria.
Concluindo, acho a escrita assustadoramente bela nesse mistério que se desprende dela, criando outras vozes que aproximam o escritor de um demiurgo.
Gostaria de passar para este post todo o extenso texto de Alberto Manguel, mas não posso fazê-lo por questões de tempo. Passo apenas, para finalizar, a citação que o abre, de Samuel Beckett, na língua francesa (aquela que parece cantada pelos pássaros), acabando assim a minha breve reflexão da forma inversa da que ele, Alberto Manguel, começou. Tenho pena de te dar tão pouco acerca do tema em questão, mas haverá tempo de to ler, em presença ou ao telefone (com muita magia dentro da voz, simplesmente humana), linda amiga... Aqui vai a citação soberba:
« Je dis je en sachant que ce n'est pas moi»
« Je dis je en sachant que ce n'est pas moi»
2 comentários:
Doçura
Adorei o teu ensaio! è filosoficamente fascinante pensar nessa entidade, o EU, que afinal não é o nosso EU!
Achei o texto que escreveste profundamente belo... e muito rico ao nível das ideias que expões uma vez mais!, de uma forma absolutamente genail! Adoro o poder da tua escrita! O bom escritor, (lembras-te no Escritaria?), não é aquele que escreve bem... é aquele que acrescenta ou empresta sempre mais alguma coisa à escrita! Amiga...tu tens esse poder!
Eu sei... eu sinto!
As tuas palvras irrompem do papel ... saem-te espontaneamente sem te pedir licença! e nesse ponto, esse teu EU é-te totalmente alheio.... não o controlas!
Como ficaria aqui a reflectir contigo o resto do serão!
Imagino as palavras que te diria!As questões que te faria!
Imagino as respostas... a ansiedade da tua alma... a vontade de saciarmos as nossas almas!
Adoro-te Amiga! Nem sabes como fico feliz por saber-te tão próxima de mim!
Milhões de beijos!
Com tantas palavras amigas que me dás fico mesmo convencida e vou dormir cheia das tuas palavras como se nem te conhecesse de nenhuma parte. Quero apenas dizer-te que preciso da tua resposta pronta e filosofia para continuarmos o assunto... amanhã, depois da minha onsulta, sem falta~...quero ouvir as tuas palavras sobre isto...entrar na tua metafísica e (com as cordas ou a espuma quantica), ouvir vozes vindas doutro mundo...bjs e obrigada +por seres tão amiguinha.
patrícia
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