Delicia-te, linda amiga, com esta migalha de Uma Viagem à India como eu... Podes deixar a luz apagada, ler no escuro, mesmo que imprimas o excerto, porque de lá emerge um foco de luz forte (tens que ter até bastante cuidado, não vá ela cegar-te!) que ilumina tudo até ao limite do visível. Mts bjs (prometo -te mais excertos desta viagem mental).
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O certo é que em tal encontro havia embaraço mútuo,
pois a linguagem do nosso herói parecia aos outros
ruído indiscreto do estômago, o que mostra também,
afinal, como versos em língua desconhecida podem soar
do mesmo modo que perturbações
surpreendentes na velha máquina de costura.
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E é evidente: conhecem-se os homens pelo que lêem
mas não só. Como matam - que armas usam-
e como se apaixonam -que palavras utilizam nas
declarações de amor. Ah, e ainda um pormenor: de quem
tens medo? E que nome dás à coisa grande que do céu
nunca chega a vir porque prefere manter-se assim.
possibilidade?
Se decifrares o último barulho que um moribundo faz,
descobrirás a sua religião, eis uma certeza.
(...)
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Cada homem pensa-se portador da melodia exacta,
mas uma melodia não é o resultado de um problema
de quantidades
mas de um bem mais perturbante problema de alma.
Cada música responde assim
à indecisão que uma existência carrega:
desisto de viver ou mato? Luto ou esqueço
o que pode ser inundado?
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O certo é que de entre os diversos materiais do mundo,
a alma é de longe um dos mais antigos,
porém se o cérebro que inventa e escreve versos
é apenas uma víscera de boas proporções,
eis que desde já Bloom desiste de olhar para o céu
à espera de acontecimentos humanos ou divinos.
Do céu nada virá que não seja natural e dispensável.
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Diga-se que pensar não é assim tão fácil.
Certos homens, estando sentados,
esforçam-se tanto por esboçar uma ideia
que acabam banhados em suor.
E entretanto cá fora: nada,
nem a carcaça do mais efémero indício
de inteligência. Cada ideia parece estar nesses cérebros
como um labirinto de que só raramente
consegue sair. Bloom pensa naquele pai e nos três filhos.
Que família coerente, murmura.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à India, Canto I
1 comentário:
Doçura linda
promete... gostei dos cantos que colocaste... mas são DIFÍCEIS!!!!!!!!!!
ler Gonçalo é entrar numa espiral de quase loucura... é entrar no mais íntimo do ser humano... Adorei, amiguinha...
Beijinhos
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