sábado, 13 de novembro de 2010

CARTAS DA LITERATURA

De A para X é um fascinante romance epistolar (nomeado para Booker Prize em 2008) sobre o amor e que nos concede paralelamente uma análise da forma como a humanidade se afirma pela luta. A’ida, farmacêutica, escreve cartas a Xavier - o seu amante recluso condenado a prisão perpétua por actos de terrorismo - contando-lhe pequenos acontecimentos do seu quotidiano que sabe que o alimentam e podem apaziguar a sua dor. Aqui vai uma carta entre tantas outras (encontradas na cela de Xavier) que fazem este romance. Prometo outras, para mais tarde:
«Acordei às três da manhã. Onde quer que incidisse, a luz era cor de cinza. Levantei-me, vesti-me e, sem perguntar a mim mesma porquê, saí para a rua. As luzes estavam apagadas. Por hábito, fui andando em direcção à farmácia. A certa altura vi uma raposa e pensei no Ved. As noites são mais simpáticas, dizia ele. Esta não, disse eu para mim mesma, esta faz tudo parecer lixo.

   Comecei a andar mais depressa, a ouvir o som dos meus próprios passos e o silêncio à espera de os abafar. E pensei: uma mulher pode sentir pena de um homem, ela pode consolá-lo, no entanto a consolação não dura muito. Pensei nos homens e em como eles gostam de se apresentar uns aos outros como vencedores – mesmo que as suas pequenas vitórias tenham de ser inventadas. No entanto, a provação mútua que eles dedicam uns aos outros não dura mais do que o nosso breve consolo.
A seguir ouvi o barulho de um comboio a aproximar-se e tive medo porque não existe nenhuma linha-férrea. Carruagem atrás de carruagem. Fechei os olhos. Um comboio de mercadorias, não de passageiros, com muitos de nós agarrados aos tejadilhos dos vagões.
Com os olhos fechados, pensei: aquilo que dura é o facto de as mulheres reconhecerem os homens por quem se apaixonam como vencedores, independentemente do que acontecer, e os homens se honrarem uns aos outros pela sua experiencia partilhada da derrota. É isto que dura!
O comboio ia a passar, apitou, e o apito recordou-me o meu avivo em Tora. Ele ganhava a vida a limpar comboios de passageiros à noite e referia-se às suas gares como dormitórios.
- As locomotivas dormem lá! – dizia-me ele quando eu tinha cinco anos.

A tua A’ ida

John Berger, De A para X - Cartas de Amor, Civilização Editora

2 comentários:

Caridee disse...

Gostei bastante desta carta. Talvez por não ser daquele género de cartas de amor, de cartas em que a paixão inunda as palavras.
Ao lê-la senti que quem a escreveu tentou esconder nas entrelinhas o seu "eu" dando-o a conhecer através das palavras sobre o seu quotidiano e as suas opiniões.
vou ficar à espera das cartas que me têm acompanhado ultimamente, nunca esquecendo a belíssima carta de Vergílio Ferreira, sem dúvida a que mais me marcou.
bjinho

Leitoras SOS disse...

Podes contar com mais cartas que merecem ser lidas e relidas. Posso postar mais uma de Cartas a Sandra de Vergílio Ferreira. Bjinho

Patrícia