quinta-feira, 11 de novembro de 2010

EXCERTOS QUE FICAM

Giovani Dalessi
«Cheguei à parte mais difícil da minha narrativa.
Depois que Rozenn me deixou, tive inúmeras mulheres. Não tive nenhuma. Também já te disse isto. Passaram pela minha vida como através de um filme mudo, nem lhes lembro a voz, apenas certos gestos, de uma o jeito que tinha de prender a minha perna entre as dela para adormecer, de outra a maneira de olhar, como se visse além das coisas (era míope). Recordo com um sorriso triste. Uma gargalhada áspera. Um pente de madeira abandonado na gaveta da cómoda. A caligrafia nervosa de uma artista plástica com quem me correspondi durante cinco anos. Uns dedos longos, de unhas perfeitas, pintadas de azul. Pequenos nadas. Ecos, reverberações distraídas do meu primeiro amor. Então apareceste tu, pulsos delicados, olhos grandes, tão cheios de lz, tão pesados de silenciosas sombras, a gargalhada ácida e o humor friável. Aconteceu num fôlego: num instante estava lúcido e no seguinte apaixonado.

Acordo, olho-me ao espelho, e sei que envelheci. Não fossem os espelhos e colocaria em causa o que afirma o meu bilhete de identidade. Passei dos oitenta, eu, que nos meus sonhos ainda salto muros para roubar as mangas mais altas?

Impossível. Ainda, agora, assim como estou, com os músculos já um pouco lassos, os ossos enfraquecidos, dores persistentes nas articulações, seria capaz de saltar os mesmos muros e de escalar as velhas mangueiras frondosas da minha infância. Vai-me faltando o fôlego, admito, para escapar aos perdigueiros do vizinho.

(Eram três, os perdigueiros: um macho velho e plácido, chamado Tóquio, e duas fêmeas ferozes. A gente saltava o muro, atirando pedras com uma xifuta, provocando os animais, esperava que as fêmeas saltassem, rosnando, e então galgava a mangueira. Recolhidas as mangas, três ou quatro, grandes e sumarentas, o desafio era regressar com elas enroladas na camisa, descendo por um ramo propício, o qual, inclinado sobre o muro, permitia saltar para o lado de lá. Um dia, o vizinho surgiu em cuecas, camisa interior, trocando os pés, caçadeira na mão, e disparou duas vezes. Pretendia apenas assustar-nos, é claro, não mais do que isso, mas estava tão bêbado que calculou mal a pontaria e um par de chumbos foram enterrar-se nas nádegas fartas do Pedrito, o filho do farmacêutico. Eis um bom exemplo de alguém que querendo errar, acertou, cometendo assim erro maior. A partir desse desgraçado evento, Pedrito passou a ser conhecido por Cu-de-Chumbo, nome que carregou a vida inteira, o que, presumo, não deve ter sido fácil, sobretudo para um juiz.)

Agora sou sem um fim, como esta picada que me desconduz a Massangano. Um erro feliz, amiga, um jubiloso engano. Exulto ao sol , feito um lagarto. O brilho do capim enche-me a alma de um vigor repousado e verde. Enquanto te escrevo, um rio me ocorre, saltando a mata, vem até mim como um cachorro manso e me lambe os pés. (…)»

José Eduardo Agualusa, Milagrário Pessoal, pp. 170, 171

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