sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A PROPÓSITO DE JOANINHA

Lembrei-me a propósito da Joaninha de As Viagens na minha Terra do post anterior de vos trazer outras Joanas do mundo... No dia em que comecei a ler Memórias do Cárcere de Camilo Castelo Branco (empurrada impetuosamente  para este livro por José Eduardo Agualusa a partir das suas referências - no seu último romance - à correspondência entre os companheiros de prisão Zé do Telhado e o próprio Camilo) fiquei precocemente deslumbrada com os paratextos que antecedem o romance propriamente dito. Não tinha ainda entrado no romance e já detectava, para além da riqueza imensa da língua portuguesa ( e do linguajar próprio do seu povo presente também  nos seus outros romances) em que este autor nos faz  mergulhar atónitos, a originalidade das curiosidades, das muitas historietas e opiniões (muitas vezes irónicas demais para a época em que viveu) que veicula numa espécie de jorro de letras perfeito e infatigável,  fazem dele único e genial. 
A leitura destes textos de Camilo fez-me, mais uma vez, concluir que o (re)investimento nos clássicos fazem muita falta, obviamente a par da leitura dos melhores autores da contemporaneidade (pois que preenchem os vazios que o passado vai deixando neste presente, esburacados e remetidos para as bermas do "novo" edifício a que chamamos de cultura literária, tão resistente à leitura, por exemplo, dos românticos, como se os mesmo nos pudessem contagiar com alguma enfermidade literária que não valesse a pena experimentar enquanto monumento pálido - e triste? nem sempre - da nossa história literária). Eu gosto bem dos românticos, mas a crítica é que estabelece o que devemos ler ou por de lado, sem que nos apercebamos disso... basta consultarmos os programas do ensino secundário ou das universidades que passam por cima de textos e autores inadiáveis...
Deixo um excerto das Notas Preliminares das Memórias do Cárcere, onde Camilo nos fornece algumas histórias acontecidas no seu trajecto de fuga ao decreto de prisão, por ter raptado Ana Plácido, a mulher que amava que por acaso era casada com outro homem, que os acusou perante tal ignominia. Em Guimarães (em plena fuga) depara-se com o hotel a que se refere logo nesta primeira linha e daí, fala-nos das Joanas:

«Guiaram-me para o primeiro hotel da terra, denominado o da Joaninha.
Este nome soara-me como de bom agouro.
Muita gente desadora o nome Joana. Eu também tinha esse capricho de mera eufonia, antes de Almeida Garret lhe dar foros de lindeza, que os não tem de maior melodia Beatriz ou Laura. Antes das Viagens na minha Terra, todas as Joanas, exceptuadas a santa, vistas à luz da história, me pareciam viragos, mulheres-homens refractárias a ternuras, e desenfeitadas de seus naturais adornos.
Aí vai erudição a froixo, como é moda:
Joana de Navarra espostejou o exército do conde de Bar, como qualquer senhora de sua casa rasga peças de Bretanha para o seu bragal.
Joana, mãe de Henrique IV, introduziu o calvinismo em França, e teve por isso o desgosto de morrer empeçonhada pelos católicos. Calvinista! Deus nos defenda!
Outra Joana Henriques, rainha de Navarra, morreu em guerra, defendendo uma praça da Catalunha.
Lembro-me agora duma Joana, que me faz piedade. Era a mãe de Carlos V, denominada a louca. Ensandeceu-a o desprezo do marido, o arquiduque de Áustria, que a teve em ferros cinquenta anos!
outra Joana me acode logo a desvanecer a piedade daquela: é Joana de Nápoles, que faz matar o marido, e casa com o assassino, e por isso veio a morrer esganada.
Uma outra Joana, sucessora daquela, é uma ladainha de reais escândalos e homicídios de amantes.
Com Joana d’ Arc não simpatizo. Aquela heróica restauração de Orléans, se fosse obra miraculosa da donzela, nem assim a lustrava mais em minha opinião. Uma menina, que acutila ingleses por ordem da divindade, dá ruim ideia de Deus, e do seu coração.
E o que me dizem de uma Joana, que teve o desaforo de fingir-se homem, e subir na hierarquia eclesiástica até fazer-se papa, e denominar-se João VIII?! A esta hora estava este João canonizado, se Joana, quando ia em procissão, não dá à luz do dia e dos círios um robusto menino! Ora vejam por que mãos tem andado a tiara de S. Pedro!
Não me lembram outras Joanas execráveis, senão a senhora Joaninha da estalagem de Guimarães.
O diminutivo aqui é figura que os retóricos nomeiam antífrase. (…)»


Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, Discurso Preliminar

(O Quadro é de autoria de Juan de Flandres : Joana, a Louca)

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