quinta-feira, 11 de novembro de 2010

CARTAS DA LITERATURA


Deixo mais um excerto de uma carta literária com grande peso no nosso Romantismo (que já não consta do programa de Português do ensino secundário e que, por isso mesmo, pode tornar-se, quiça, mais apetecível para todos)... desta vez é Carlos que escreve a Joaninha, o par amoroso e adorado de Viagens na minha Terra de Almeida Garrett. Aqui vai:

                                        Évora Monte, ... de Maio de 1834

Viemos para Portugal; e o resto agora da minha história sabes tu.



Cheguei por fim ao nosso vale, todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te…não, não é verdade assim. Conheci, mal te vi entre aquelas árvores, à luz das estrelas, conheci que era a ti só que eu tinha amado sempre, que para ti nascera, que teu só devia ser, se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de juntar-se com essa alma de anjo que em ti habita.


Não é Joana; bem o vês, bem o sentes, como eu sinto e o vejo.


Eu sim tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui criado, estou certo, para a glória tranquila, para as delícias modestas de um bom pai de famílias.


Mas não o quis a minha estrela. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar há-de ser infeliz por força, a que me entregar o seu destino, há-de vê-lo perdido. Não quero, não posso, não devo amar a ninguém mais.


A desolação e o opróbrio entraram no seio da nossa família. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quis, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.


Adeus, Joana, adeus, prima querida, adeus, irmã da minha alma! Tu acompanhas nossa avó, tu consola esse infeliz que é o autor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; esquece-me.


Eu, que nem morrer já posso, que vejo terminar desgraçadamente esta guerra no único momento em que a podia abençoar, em que ela podia felicitar-me com uma bala que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que farei?


Creio que me vou fazer homem político, falar muito na pátria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?... talvez darei por fim em agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outras.


Adeus, minha Joana, minha adorada Joana, pela última vez, adeus!


Almeida Garrett, Viagens na minha Terra

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