quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Leite Derramado - Chico Buarque


Quando disse que viajei até ao Brasil, foi neste livro que apanhei o voo até lá e me confrontei com a história que um velho narrador encamado no hospital vai contando, de forma monologal, mas afinal dirigida à filha que o visita ou, insistentemente, às enfermeiras que o tratam (com predilecção para uma delas a quem promete tornar sua mulher quando sair do internamento), e que não é mais do que uma saga familiar (muito condensada!) passada nos dois últimos séculos brasileiros. É a sua memória intermitente e confusa que vai narrando, com toda a graça e doçura do português do Brasil, a sua vida e todos os seus momentos fortes. Como diria Roland Barthes, esta "biographème" transfigura a sua minúscula vida e relações humanas numa dimensão literária eterna através de um fio de memória que sobreviveu para tornar presentes as maiores felicidades, amores e desilusões, imagens de uma infância cheia de recantos encantadores, figuras e apontamentos que o marcaram até à morte. A escrita ternurenta e profunda de Chico Buarque cativa o leitor muito cedo, provocando-o inúmeras vezes com a entrada abrupta (e inconveniente por vezes) nas profundezas psicológicas de uma personagem dolorida, que tudo nos deixa conhecer sobre si, até mesmo o seu amor não correspondido pela mulher da sua vida, Matilde, que apresenta com uma capacidade de a amar absolutamente invejável.
Transcrevo apenas um dos muitos momentos literários emocionantes:
" No dia seguinte minha mãe me perguntou se os pais de Matilde lhe consentiam estar a sós comigo em casa, toda a tarde depois das aulas. Mal sabia ela que, de noite, eu espreitava da minha janela de fundos a hora de Matilde pisar a relva do jardim na ponta dos pés, entre as amendoeiras e a casa dos empregados. Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, que Matilde apenas ultrapassava. Encostava-se na parede da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios se estreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto. (...) Quando dava por mim, estava colado nos ladrilhos da parede, porque num deslize Matilde sempre me escapava. E a cada vez eu ia inspeccionar salas, quartos, banheiros, porão e sótão, fingindo crer que ela teria fugido por engano para dentro de casa. (cap. 8)

1 comentário:

Anabela disse...

querida amiga:

confesso, e desculpa a minha sinceridade!, que não fiquei muito entusiasmada em ler este livro! Faço mal em assim pensar? Desculpa, são sensações que nos empurram e não sabemos objectivamente dizer porquê!
beijos