Um evento inacreditavelmente belo...uma casa poética, com um convite à leitura de uma ode de Pessoa-Reis em 28224 versões ...uma viagem quase infinita que lembra as experiências da poesia concretista. Parabéns Inês Pedrosa por tudo o que tem feito de genial por simplesmente amar, como eu, Fernando Pessoa. Fica provada a sua imortalidade...
Transcrevo um dos eventos culturais mais criativos de que tenho memória: "Casa-Poema""A 16 de Setembro, a Casa Fernando Pessoa transformou-se num poema, por dentro e por fora. Fachada exterior e paredes albergaram inúmeras versões de uma só ode de Ricardo Reis (Fernando Pessoa). A inauguração da Casa-Poema foi acompanhada, durante o dia, de animação de rua. Às 19h30, actores da Tenda – Palhaços do Mundo disseram poemas de Pessoa, das janelas da Casa Fernando Pessoa para a rua em frente. Pelas 21h30, na mesma rua, teve lugar o espectáculo musical «Flak + Amigos», e às 22h30 a peça de teatro «Todos os Casados do Mundo são Mal Casados», dramaturgia de Inês Pedrosa a partir de textos de Ovídio e Fernando Pessoa, encenada e interpretada por Diogo Dória.
Pessoa divertiu-se a semear heterónimos póstumos. Tratou-se de um acto voluntário, generoso, perverso e, acima de tudo, erótico. O poeta conhecia com relativa exactidão a data da sua própria morte, como pode verificar-se pelos seus horóscopos. Não importa, para o caso, o que pensemos da astrologia: o que interessa é que ele levava muito a sério essa actividade e que, sabendo que tinha pouco tempo de vida, não cuidou de fixar os seus textos. Construiu uma obra aberta com a qual é possível jogar infinitamente. Nas entrelinhas de tudo o que deixou escrito encontra-se tudo o que, não estando escrito, não podendo ser escrito, existe. É esse o portentoso motor da sua voz, aquilo que a tornou, não apenas universal, mas exactamente imortal – a ideia imparável do Livro Impossível como único livro verdadeiro. O exemplo mais forte deste conceito de literatura é «O Livro do Desassossego», um livro que pode ter – e tem tido – as mais variadas versões e ser lido de todas as maneiras sem perder a sua identidade e sem se vergar ao consolo fácil de um fim. A verdade constitui a força motriz do engenho poético de Fernando Pessoa; nele nunca houve qualquer separação entre literatura e vida. A coragem de escrever com todos os recursos físicos e metafísicos de que dispunha, e de viver numa demanda contínua de conhecimento, é a raiz da sua popularidade. Não é preciso que alguém possua a chamada «cultura» para entrar num poema de Pessoa, porque cada um dos seus versos é feito da matéria bruta da existência. Essa qualidade imediata, feroz, de transcrição do indizível comum tornou-o, como ele sabia que aconteceria, eterno e popular – e afastou dele os que se afadigam a catalogar saberes e sentimentos em gavetas estanques e estéreis. Pessoa não ignorava sequer que a aparente incompletude dos seus papéis, a dificuldade da sua caligrafia e a multiplicidade de variantes que deixou em muitos poemas abriria também as portas a diversas espécies e graus de parasitas. Houve por conseguinte perversidade - uma perversidade infantil, lúdica, curiosa – nesse acto generoso de entregar a fixação de grande parte da sua obra às cabeças do futuro. O erotismo que marca qualquer acto criador é particularmente intenso no caso de Pessoa por se tratar de uma entrega consciente e radical diante do abismo escuro do tempo e do espaço. Pessoa pôs tudo o que era em tudo o que fez – incluindo as dúvidas. Mas nenhuma das suas dúvidas era uma dúvida qualquer, resultante da preguiça ou do afã laborioso que faz as vezes dela: cada variante significa uma rotação autêntica, nunca um efeito de estilo – coisa que aliás Pessoa jamais usou, porque a sua ética era a do desdobramento, ontologicamente oposta à ética sequencial que rege o mundo de faz de conta que é ainda o nosso. Em Pessoa não há máscaras que se sucedem, papel a papel, mas personalidades que ousam revelar-se para lá de todos os limites. De uma conversa com Richard Zenith sobre a impossibilidade de uma fixação «fidedigna» ou «definitiva» da obra de Pessoa nasceu a ideia desta exposição. Richard disse que seria interessante aplicar a uma ode de Ricardo Reis recheada de variantes um programa matemático, ver quantos poemas nasceriam dessa operação, e expô-los. Perguntámos à Patrícia Reis se seria possível criar uma exposição assim, e a Patrícia, que não conhece a palavra «impossível», pôs imediatamente a sua fantástica equipa (atelier 004) em movimento. Desencantaram-nos a «Dimensão Global», que fez o programa matemático gerador de poemas. Poucos meses depois nasceram, exactamente, 28224 poemas. Uma parte deles encheu a fachada e as paredes da Casa Fernando Pessoa. O poeta que viveu nesta casa os seus últimos 15 anos continua a escrever, como aqui se prova.
Pessoa divertiu-se a semear heterónimos póstumos. Tratou-se de um acto voluntário, generoso, perverso e, acima de tudo, erótico. O poeta conhecia com relativa exactidão a data da sua própria morte, como pode verificar-se pelos seus horóscopos. Não importa, para o caso, o que pensemos da astrologia: o que interessa é que ele levava muito a sério essa actividade e que, sabendo que tinha pouco tempo de vida, não cuidou de fixar os seus textos. Construiu uma obra aberta com a qual é possível jogar infinitamente. Nas entrelinhas de tudo o que deixou escrito encontra-se tudo o que, não estando escrito, não podendo ser escrito, existe. É esse o portentoso motor da sua voz, aquilo que a tornou, não apenas universal, mas exactamente imortal – a ideia imparável do Livro Impossível como único livro verdadeiro. O exemplo mais forte deste conceito de literatura é «O Livro do Desassossego», um livro que pode ter – e tem tido – as mais variadas versões e ser lido de todas as maneiras sem perder a sua identidade e sem se vergar ao consolo fácil de um fim. A verdade constitui a força motriz do engenho poético de Fernando Pessoa; nele nunca houve qualquer separação entre literatura e vida. A coragem de escrever com todos os recursos físicos e metafísicos de que dispunha, e de viver numa demanda contínua de conhecimento, é a raiz da sua popularidade. Não é preciso que alguém possua a chamada «cultura» para entrar num poema de Pessoa, porque cada um dos seus versos é feito da matéria bruta da existência. Essa qualidade imediata, feroz, de transcrição do indizível comum tornou-o, como ele sabia que aconteceria, eterno e popular – e afastou dele os que se afadigam a catalogar saberes e sentimentos em gavetas estanques e estéreis. Pessoa não ignorava sequer que a aparente incompletude dos seus papéis, a dificuldade da sua caligrafia e a multiplicidade de variantes que deixou em muitos poemas abriria também as portas a diversas espécies e graus de parasitas. Houve por conseguinte perversidade - uma perversidade infantil, lúdica, curiosa – nesse acto generoso de entregar a fixação de grande parte da sua obra às cabeças do futuro. O erotismo que marca qualquer acto criador é particularmente intenso no caso de Pessoa por se tratar de uma entrega consciente e radical diante do abismo escuro do tempo e do espaço. Pessoa pôs tudo o que era em tudo o que fez – incluindo as dúvidas. Mas nenhuma das suas dúvidas era uma dúvida qualquer, resultante da preguiça ou do afã laborioso que faz as vezes dela: cada variante significa uma rotação autêntica, nunca um efeito de estilo – coisa que aliás Pessoa jamais usou, porque a sua ética era a do desdobramento, ontologicamente oposta à ética sequencial que rege o mundo de faz de conta que é ainda o nosso. Em Pessoa não há máscaras que se sucedem, papel a papel, mas personalidades que ousam revelar-se para lá de todos os limites. De uma conversa com Richard Zenith sobre a impossibilidade de uma fixação «fidedigna» ou «definitiva» da obra de Pessoa nasceu a ideia desta exposição. Richard disse que seria interessante aplicar a uma ode de Ricardo Reis recheada de variantes um programa matemático, ver quantos poemas nasceriam dessa operação, e expô-los. Perguntámos à Patrícia Reis se seria possível criar uma exposição assim, e a Patrícia, que não conhece a palavra «impossível», pôs imediatamente a sua fantástica equipa (atelier 004) em movimento. Desencantaram-nos a «Dimensão Global», que fez o programa matemático gerador de poemas. Poucos meses depois nasceram, exactamente, 28224 poemas. Uma parte deles encheu a fachada e as paredes da Casa Fernando Pessoa. O poeta que viveu nesta casa os seus últimos 15 anos continua a escrever, como aqui se prova.
Inês Pedrosa
Escolho este poema de Reis que ouso também considerar como a minha verdade:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive .
2 comentários:
O vosso leitor, também no Pessoa um dos seus idolos...de certeza que este tambem vos agrada
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
PS: continuo a gostar muito de postar aqui
querida amiga:
de facto trata-se de uma ideia genial: recriar o poema de Ricardo Reis em quase 30000 versões! É alucinante! Espero poder apreciar esta exposição...
Obrigada pela sugestão amiguinha.
Beijos
Anabela
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