segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Cheiro a terra molhada

Numa noite em que o cheiro a terra molhada invade as nossas vidas... Que linda noite de Outono! Bliss – June Leeloo
Balada do Poema que não há, Manuel Alegre (in Babilónia)

Quero escrever um poema
Um poema não sei de quê
Que venha todo vermelho
Que venha todo de negro
Às de copas às de espadas
Quero escrever um poema
Como de sortes cruzadas

Quero escrever um poema
Como quem escreve o momento
Cheiro de terra molhada
Abril com chuva por dentro
E este ramo de alfazema
Por sobre a tua almofada
Quero escrever um poema
Que seja de tudo ou nada

Um poema não sei de quê
Que traga a notícia louca
Da história que ninguém crê
Ou esta afta na boca
Esta noite sem sentido
Coisa pouca coisa pouca
Tão aquém do pressentido
Que me dói não sei porquê

Quero um poema ao contrário
Deste estado que padeço
Meu cavalo solitário
A cavalgar no avesso
De um verso que não conheço

Que venha de capa e espada
Ou de chicote na mão
Sobre esta noite acordada
Quero um poema noitada
Um poema até mais não

Quero um poema que diga
Que nada há que dizer
Senão que a noite castiga (...)

1 comentário:

Leitoras SOS disse...

Ontem, assim que senti o cheiro a terra molhada lembrei-me de ti e de "As Amigas"... É um cheiro completamente metafísico, que mal é descoberto pelo cérebro incita a um prazer nostálgico que por um lado se confunde com a palavra "saudade", por outro lado quase contorna os segredos que o destino nos reserva...
Achei o quadro magnífico com as suas cores fortes e uma expressão indefesa no rosto de uma menina-boneca que se resguarda dos outros, de olhos fechados, e do frio, enlaçando as suas próprias pernas. (Não retornei à imagem, espero que a minha memória não me atraiçoe). O poema de Manuel Alegre tem um título que funciona como uma entrega ao leitor: Vem cá tu ver se descobres aquilo que escrevi meio perdido... É um poema muito rico de emoção que demonstra a insatisfação, a insaciedade do poeta, do criador, que tenta distanciar-se dos outros através de algo original. Também a ele lhe parece que o cheiro da terra molhada é indescritívelmente singular e não sabe chamar-lhe outra coisa que não seja "cheiro da terra molhada"... Adorei a expressão "poema noitada" e o prosaísmo com que concebeu este longo poema conseguindo sempre ir ao lado da beleza nocturna. Muitos beijos por este post delicioso.