quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Tanka - O Japão no feminino



1
Será que apareceu

só porque eu adormeci
a pensar nele?
se eu soubesse que sonhava,
nunca teria acordado.
2

Quando o meu desejo
se torna intenso de mais,
visto a roupa de dormir
virada pelo avesso***,
escura casca da noite.

3.

O meu desejo de ti
é forte para contê-lo -
assim ninguém vai culpar-me
se à noite for ter contigo
pela estrada de meus sonhos.

4.

Não há como vê-lo
nesta noite de luar -
estou deitada e desperta,
os seios ardendo em desejo
e o coração em chamas.

5

Sei que tem de ser
assim no mundo real
e tão cruel -
até mesmo nos meus sonhos
nos escondemos dos outros.

6.

Embora vá ter com ele
pelos caminhos do sonho,
sempre e sem descanso,
nada iguala a realidade
dum real e mero olhar.

7.

A noite mergulha
com um veado a chamar
em som agudo
e, ao ouvi-lo, escuto
um lado do próprio amor.

8.
Se isto fosse um sonho
certamente te veria
uma vez ainda -
por que tem o amor desperto
de ficar incompleto?

9

As cigarras cantam
à hora crepuscular
na aldeia do monte -
esta noite ninguém vem,
excepto o vento, visitar-me

(...)

Ono No Komachi ((834?-?)

"O Japão no Feminino", Tanka - séculos IX a XI, Organização e Versão Portuguesa de Luísa Freire, Assírio e Alvim

*** Não resisto em passar a nota de rodapé referente ao segundo tanka: "Neste poema vemos a poetisa acordada, seguindo o velho costume japonês de virar a roupa ao contrário para que se cumpra um desejo."


Tanka significa "poema curto" (tan - curto, breve; e Ka - poema ou música) e é formada por 31 sílabas (versos de 5 - 7 - 5 - 7 - 7 sílabas respectivamente). A sua origem está no waka, termo genérico para designar a poesia aristocrática (também de 31 sílabas).

O Tanka é um poema altamente subjectivo, apaixonado e complexo, "tendo contribuido para uma era poética de excelência técnica e expressiva e de grande profundidade emotiva e filosófica."

Komachi, juntamente com Shikibu (considerada a segunda maior poeta do Japão), é considerada pelos críticos uma figura que ultrapassa a sua época e que se pode igualar às maiores poetisas de qualquer tempo.

Ao reparar na moralidade desnudada que a literatura no feminino, ou melhor que um dos nomes incontornáveis da poesia da corte de então e de todos os tempos, exibe, fico maravilhada e desencantada, ao mesmo tempo, com a contenção e quase abstenção de ousadia das nossas poetisas de todos os tempos!


36
Para onde vais
assim com tanta pressa?
Hoje durante a noite,
irás ver a mesma lua
onde quer que estejas.

37
Há muitas coisas
que nadam belas e estranhas
nos lagos da meia-noite...
De dia não as divido
com os olhos que lá mergulhem.

38
Pergunto se o vento
irá abrir algum trilho
na erva do meu jardim
para que alguém possa vir
ainda hoje visitar-me.

Isumi Shikibu (974?-1034)

Este Tanka surge como resposta a um amigo que, num funeral, lhe escreveu para lhe perguntar se tinha reparado como a lua tinha brilhado na noite anterior. É uma composição profundamente budista na sua expressão de um sentido de unidade entre o poeta e a lua.
Contextualizando (tanka 36), No meio de uma multidão que se encontra de pé a apreciar a lua, numa noite de Verão, alguém sai daquele mesmo local à pressa. Isto inspira-me algumas belas cenas para um filme… Explicita-se também em nota de rodapé (tanka 37) que o eu poético feminino dirige estas palavras a um homem que costumava visitá-la à noite, em segredo, mas que pediu agora para vir durante o dia.

1 comentário:

Anabela disse...

Doce amiga:
Apreciei os "Tanka" que aqui deixaste. Achei-os de facto bem complexos, apesar da aparente simplicidade da sua construção.
Fiquei atónica com as ilações que tiraste pois em alguns momentos pensei: como é que a minha amiguinha conseguiu imaginar isto? Foi o que me ocorreu no segundo conjunto de Tankas (36-38) em que conseguiste não só ver um funeral mas imaginar que a amante quereria que o amante a visitasse de noite...
Não imaginei nada disso pois tive dificuldade em articular os versos. Contudo e apesar da minha fraca agilidade, apreciei-os bastante. Aliás já me tinhas falado nestes "poemas curto".
A fotografia é encantadora e demonstra claramente a atmosfera misteriosa que rodeia a cultura oriental nomeadamente a mulher. Durante muito tempo acreditei que gostaria de ser uma mulher oriental até o dia em que, horrorizada!, vi um documentário sobre os castigos infligidos à mulher para ser bela para o amante! Uma escravatura diabólica em prol do amado...
Muitos beijos, doce Pat. Adorei o post...
Anabela