"a janela de guilhotina, lembro-me, ficava entreaberta pela noite fora, até à alba. metia-lhe uma régua de madeira.segurava-a. o vento de verão entrava, alisava-me as pernas.entrava também o restolhar das aves, sombras da folhagem dos plátanos em frente, do largo aceso a luz nua, a luz crua, entrava."
p.60
"as pernas eram duas colunas de mármore, estavas de costas, não te via o rosto, choravas?, a salaera um cone cheio de vidros coloridos, havia um rumor de água correndo, caindo como que em cima de folhas lisas, esticadas, um som metálico.
entre os imensos vidros coloridos, uma porta alta, um feixe de luz dando para um pátio redondo com plantas espinhosas, de bagas vermelhas, e sobre a folha larga, carnuda, duma palmeira anã, um rato branco com os teus olhos: duas esmeraldas refulgindo, molhadas, as tuas lágrimas?
gritei. dos espinhos gotas de cera tombavam, soldavam-se umas às outras, formavam pequenos ladrilhos de cores, giravam lentamente, encorporavam-se.
depois o silêncio trouxe-me o teu rosto - os espinhos soltavam-se, voavam, espetavam-se nos olhos do rato - essa folha larga, carnuda, jorrando sangue no meio do pátio redondo, branco.
p.77
Luís Pignatelli, Galáxias, Círculo de Poesia, Moraes Editores, 1973
Impressionam-me os dois textos, fortemente líricos, pela sua clareza descritiva,que paulatinamente esboça um desenho ditado pelo narrador. No 1º texto uma breve alegria sai da simplicidade de um momento que antecede a madrugada. Um narrador que espreita por entre a abertura da janela de guilhotina sustentada por uma régua de madeira a realidade... agrada-me a imagem.
O segundo texto toca o surreal. A descrição de um sonho que se esbarra com um pesadelo. O mal invade o ser que se ama como uma nódoa que acaba com a toalha de mesa preferida. Lágrimas de arrependimemto, de tristeza, de auto-flagelação...O ponto de interrogação demonstra a dúvida de um narrador perturbado para sempre. Palavras como facas.
1 comentário:
querida amiga
consegui sentir a brisa que entrou por aquela janela... aliás sempre apreciei as janelas tipo guilhotina, como que a lembrarem-nos que somos mortais...
belo excerto!
muitos beijos
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