Deixa-me falar-te um pouco deste livro que ainda li neste Verão, antes que o frio chegue definitivamente e pareça descabida a sua leitura. Li a edição da Teorema e fiquei desapontada com tantas gralhas... Por mais do que uma vez, dei por falta de palavras, conjunções e até frases que se realizavam incorrectamente ao nível da conjugação verbal. Uma tristeza! Preferia tê-lo lido no original, mas cá não chega quase nenhuma Literatura Francesa apesar de sermos Europa e vivermos neste século... Seja como for, gostei da construção do personagem principal, um tradutor francês, e das imensas alusões às línguas, ao trabalho e anseios próprios de um tradutor, à sua relação amigável com as personagens das Côtes-du-Nord, de uma ilha bretã onde se encontra, enfim, à sua relação de amor-ódio para com a obra de um autor nobelizável que a Editora Parisiense Arthème Bayard lhe encomendou traduzir. Essa obra não é mais nem menos do que "Ada or Ardor" do escritor russo-americano Vladimir Nabokov.
Gilles, o tradutor, expressa desde logo o seu nervosismo pela grande responsabilidade que consiste em traduzir um autor que ainda não é defunto. Nabokov é apresentado como escritor de mau feitio que prima pelo génio mas não pela paciência. Há bastante pressa da parte dele e da editora para que a sua tradução para o francês se concretize por forma a torná-lo conhecido em todo o mundo e, claro está, permitir-lhe o acesso ao Nobel com que tanto anseia. Mas tudo isto depende da qualidade da tradução dos textos que na sua língua-mãe são de incomparável substância literária.Esta obra tem um humor particular de que gostei bastante. Apresenta a figura do tradutor como a de um criador atormentado por imensos medos (temores razoáveis tendo em conta que a obra "Ada or Ardor" - em francês "Ada ou l'Ardeur" é considerada uma obra-prima intraduzivel), pressionado pela editora a toda a hora e pelo escritor genial insuportável. Este tradutor nem sempre se encontra inspirado para fazer o seu melhor. Afinal, são as pessoas da ilha que o vão ajudar a traduzir esta obra-prima, num convívio quotidiano, rodeado de um mar de sonho, que o faz tremendamente feliz.
A intriga deste romance parte de um facto verídico, passado com o próprio autor: a tradução de uma obra invejável da literatura mundial, o que de facto lhe levou dois encantadores verões como de resto ao personagem Gilles neste "Deux Étés".
Destaco alguns excertos:
I
"Porque a tradução é uma operação dolorosa aparentada com a cirurgia (cortam-se frases, amputam-se sentidos, enxertam-se trocadilhos, estropia-se, cose-se; sob a capa da fidelidade, a traição e a ofensa). Os autores defuntos nunca protestavam. E, com essa gente instalada na eternidade, pode-se dar tempo ao tempo. Não há qualquer risco de ser chamado à pedra, de deparar com um indicador e bater nervosamente no vidro de um relógio.
No comércio com essa encantadora sociedade (Henry James, Charles Dickens, Jane Austen) o tradutor foi ganhando um mau hábito, o conforto. Trabalhava quando o desejo o visitava: raramente."
II
"A sua vida em comum com quarenta e sete gatos dava-lhe motivos de reflexão. Sobre eles, os gatos, o tradutor elaborava uma profusão de hipóteses. Vou apresentar aqui apenas duas, tendo bem consciência de que esses animais mereceriam mais do que um volume.
1. No início dos tempos os gatos habitavam os corpos dos humanos. Eram a sua parte selvagem, a sua herança da selva. Cada filho de Deus tinha em si o seu gato que constituia a sua liberdade, a sua reserva de insolência. Daí esses comportamentos dificilmente explicáveis nos homens: ronronar espapaçados ao sol e interromper-se brutalmente numa fuga tresloucada; abandonar-se às carícias e de repente recusar-se, enfurecer-se, arranhar e causar feridas cruéis, tão profundas e tão difíceis de curar como o ciúme. Por aí pretende, talvez, o gato lembrar ao homem que nada é seguro e que é preciso estar sempre alerta, mesmo a dormir.
Esta coabitação não durou muito: o homem desejava mais calma e o gato queria menos auto-satisfação, menos flatulência depois das refeições , menos arrulhos ternurentos antes do coito e menos vaidade grotesca depois. Em suma, incompatibilidade de génios. Um belo dia os gatos abandonaram o corpo dos homens mas não deixaram a sua vizinhança, a que se tinham habituado.
2. Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto quando temos um comboio para apanhar como ir à nossa memória caçar a palavra exacta e convencê-la a tomar o seu lugar na página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis"
III
"- Os tradutores são uns corsários.
(...)
- Corsários?
O prior ainda não tinha vislumbrado a semelhança entre aquelas práticas, por demais violentas, e a tradução, ocupação das mais pacíficas. Foi necessário lançar alguma luz.
-Qual é o trabalho do corsário? Quando um barco estrangeiro lhe agrada, aborda-o. Atira a tripulação ao mar e põe lá os amigos. Depois iça a bandeira nacional no topo do mastro grande. É o que faz o tradutor. Captura um livro, muda toda a linguagem e dá-lhe nome francês. Nunca lhe passou pela cabeça que os livros são barcos e as palavras as suas tripulações?
- Realmente, desse ponto de vista..."
IV
" «Que loucura nos deu, anglicistas de treta para, para nos metermos com a montanha Nabokov?» Para afogar essas vozinhas maldosas da lucidez, nada como o adamado especial (da quinta de Bois Malinge). De dois, três copos, voltava-nos a confiança. E, envolvidos pelo perfume suave, quase doce, da madressilva, sentados à volta da mesa de pedra sobre a qual se eternizavam as carcaças esventradas das codornizes, discutíamos até altas horas a língua francesa, as suas cadências, os seus ecos, a sua cotenção perpétua, o seu amor impenitente pela abstracção, essa gramática tão difícil de despentear. Será que Ada, a nossa impalpável Ada, tinha lugar nesse jardim de linhas e de ordem?
De tanto ser evocada, a língua francesa acabava por se vir instalar entre nós. Como uma convidada comprometida com um outro jantar mas que não quisesse deixar de passar para o café. Sentíamo-la chegar em bicos de pés, uma vasta presença maternal na noite. De novo mortos de timidez ( apesar do quinta de Bois Malinge) pronunciávamos, para a reter, os nomes daqueles que melhor a tinham servido: Montaigne, La Fontaine, Stendhal, Appolinaire..."
1 comentário:
Doce Pat
Adorei o post! Eu diria que todo ele verte múltiplas comparações relativas ao acto de traduzir!
- A tradução como operação cirúrgica. Reflectindo nas palavras que transcreves obrigo-me a reconhecer uma verdade insofismável: traduzir é amputar necessariamente! Atraiu-me imenso o nu da capa de Vladimir Nabokov. Um nu não explícito, sedutor e apor isso apelativo! Li alguns livros de Nabokov mas nunca este e fiquei com imensa vontade de o ler.
-A tradução como um acto corsário. A captura de letras, palavras, frases… Adorei a frase:“Nunca lhe passou pela cabeça que os livros são barcos e as palavras as suas tripulações?”
Mas doce Pat pese embora este acto, que de si tão bárbaro, não teremos que agradecer (mesmo assim!) às traduções? Isso poupa-nos a difícil tarefa de aprender tantas línguas… Ou, visto por outro prisma, se calhar se não houvesse traduções seríamos obrigados a aprendê-las…
Eu continuo a acreditar que a tradução é importante e fundamental! O que seria importante é que essa tarefa estivesse entregue a pessoas de reconhecido mérito o que nem sempre acontece, tal como exemplificaste lindamente.
Quanto ao livro que me deste a conhecer “Dois verões” (confesso a minha ignorância quer em relação ao livro quer ao autor), fiquei bem impressionada e pareceu-me uma excelente escolha. Gostei da ideia de se traduzir algo, tendo a ajuda de uma equipa tão alargada e sui generis…
Ficará nos meus EL (expectável por ler).
Muitos beijos amiguinha e obrigada pela dedicação da escrita.
Anabela
Enviar um comentário