terça-feira, 20 de outubro de 2009

Al Berto - Horto de Incêndio


Marcia Berenguer Cabral, Incêndio

Ana bela Ana,
a poesia faz-me muita falta enquanto não chega perto dos olhos, dos dedos , adormecida e quase a pegar fogo ao meu cabelo ao seu lado deitado como um ouvido, uma concha ...
Dois poemas que adoro de um poeta condenado à morte pelo SIDA
:
Incêndio
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
continua e miudinha – não te assustes
são os teu antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde



zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo – diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas – com eles no chão


notas para o diário
deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.

poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.

in Horto de Incêndio, Assírio & Alvim, Dezembro 2000, pp. 38 e 39

2 comentários:

Anónimo disse...

E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia


Mais uma vez os vossos gostos cruzam-se com os meus, este poema que vos deixo de Al Berto é também fantástico.


...o vosso FL....

Anabela disse...

Doce Pat

lindo poemas que nos trazes. Gostei muito de ambos e lembrei-me de Saramago quando li os primeiros versos do segundo poema: deus tem que ser substituido por amor...
Excelente pintura escolhida! e magnifica e ``a primeira vista nao parece um incendio.

muitos beijos
anabela