“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”
Em "Caim", novo romance de José Saramago, Deus e qualquer crença sucumbem sob uma narrativa em que se equilibram humor, ironia e muitas palavras duras. Sobra para cristãos e judeus. Em menos de 200 páginas, espalham-se embates quase filosóficos entre Caim e seu criador, no qual um discute a capacidade do outro de julgar ou ser julgado. Espectadores dessa luta, os leitores viajam por diversos episódios da Bíblia, da destruição de Sodoma e Gomorra ao dilúvio que exterminou a Humanidade, sempre pela óptica questionadora do rebelde Caim. Ou melhor, do ateu Saramago que, em entrevista por e-mail, diz que se limita a escrever o que pensa, deixando cada leitor fazer sua própria interpretação. Embora não tenha escrito ali nada de novo para aqueles que conhecem a sua profunda e propagada aversão às religiões, Saramago afirma que “Caim” tem um papel fundamental na sua bibliografia e na sua vida.
- Entre “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim” passaram-se quase 20 anos. Durante todo este período o senhor continuou a falar sobre a inexistência, a inconfiabilidade ou a intransigência de Deus, mas não em forma de literatura. Como se deu a volta ao tema em livro?
“O Evangelho segundo Jesus Cristo” é literatura, não uma mera glosa dos episódios registados no “Novo Testamento”. O regresso ao tema religioso deu-se, portanto, de maneira natural, quase como uma continuidade de trabalho. O Caim que o senhor constrói é a voz da razão, da clareza de raciocínio, mostrando um Deus tão tirano e incompreensível que torna qualquer crença patética. - Qual foi sua intenção ao escrever o livro? E como acha que será a reacção a ele?
No fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas à humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las. Quanto às reacções, não estão na minha mão. Cada um dirá o que entender conforme as suas convicções e as suas crenças.
- Entre tantas figuras bíblicas, por que a escolha de Caim? O que é que ele representa?
Desde há muitos anos que penso que a história de Caim, como tantas outras histórias bíblicas (por exemplo, a de David e Golias ou a de Job), é uma história mal contada. Não absolvo Caim, mas acuso Deus de ser o responsável do assassínio ao recusar a oferenda dele. Que diabo de Deus é este que para enaltecer um irmão despreza o outro?
- O senhor já disse várias vezes que cresceu sem formação religiosa. Chegou a ler ou a reler a Bíblia para escrever melhor os episódios do livro?
Para mim, a “Bíblia” é um livro a mais. Importante, sem dúvida, mas um livro. Como tal li-o e consultei-o sempre que necessitei. Desta vez concentrei-me no Génesis onde se encontram as figuras que tomei como personagens do livro.
- Outros ateus convictos, como Richard Dawkins e Christopher Hitchens vêm dedicando boa parte do tempo a uma espécie de cruzada antirreligiosa, lançando livros e participando de eventos nos quais reafirmam as suas ideias. Como é que o senhor vê essa empreitada?
Por mim não o faria. É praticamente impossível convencer alguém a virar as costas às suas crenças. Limito-me a escrever o que penso do assunto e deixo aos leitores a inteira liberdade de fazer o que entendam. O único que peço para mim é respeito.
- O senhor acredita que ainda é possível a existência de um mundo sem religião? O pessimismo de Caim em relação à Humanidade é também o seu?
Penso que não merecemos a vida, penso que as religiões foram e continuam a ser instrumentos de domínio e morte. Em suma, Caim teve razão para tentar impedir que outra humanidade substituísse a que teria morrido no dilúvio. Afinal, se a primeira era má, esta é péssima.. Apesar disso, todo o livro é pontuado por muito humor, com cenas que convidam o leitor a reflectir sobre a narrativa.
- Divertiu-se ao escrevê-lo?
Diverti-me bastante, mas sobretudo gozei com o facto de ter podido meter a ironia e o humor num tema em princípio tão dramático.
- Qual o papel de “Caim” em sua bibliografia? Já disse que não é um acerto de contas com Deus. Mas vê nele um significado especial?
Pela maneira como enfrentei o assunto, pela linguagem com o que o tratei, considero este livro fundamental, quer na minha bibliografia, quer na minha vida.
Prosa & Verso, O Globo (!com correcções minhas no Português!)
Um excerto da obra para os curiosos ou apaixonados por Literatura:
"(...) Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava dia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava caim. Foi então que o verdadeiro carácter de abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. (...) A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mal e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel. Um dia caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditação. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. (...) Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi dada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa (...)"
Uma pequena amostra da crítica da obra:
Segundo Juan Arias "Para Saramago, deus não é mais que um pretexto para que as religiões possam melhor escravizar a consciência humana. Com “Caim”, ele trata de deitar, literariamente, sobre o tapete do mundo, esta crua realidade. Ao mesmo tempo, e apesar de seu ateísmo, devemos a ele uma das definições mais poéticas da divindade: “Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”, afirmou ele em certa ocasião. Afinal, deus não é para ele tão indiferente como possa parecer. “Caim”, definitivamente, é também um grito contra todos os deuses falsos e ditadores criados para amordaçar o homem, impedindo-o de viver, em total liberdade, sua vida e seu destino."
Um sítio em que se pode ver um videoclipe do lançamento de Caim em Penafiel:
3 comentários:
Doce, doce Pat
Gostei do post, da entrevista e adorei o link para a editora Leya. Ja adicionei ao cantinho imaginarium... vale a pena passar por la.
Quanto ``a entrevista, fez-me pensar e estou agora aqui a debater-me com uma questao filosofica: a mim parece-me que o Saramago (pela reflexao filosofica que faz do sentido da vida!) sera antes um agnostico do que propiramente um ateu! E que ele nao se limita a nao acreditar que deus nao existe, ele sugere que nao se conseguira nunca provar que tal entidade nao existe!
Pareceu-me por isso, que houve uma certa inabilidade na conduçao da entrevista a partir de detreminado momento pois o jornalista podia ter ido mais longe... e Saramago saberia ir mais longe na explicaç~~ao.
O que te parece doce amiguinha?
Muitos, muitos beijos
Anabela
Desculpa Pat mas com tanta negaçao, e a ausencia de correcçao, fez-me reigir incorrectamente uma frase. Ai vai para esclarecer a minha posiçao:
"E que ele nao se limita a nao acreditar que deus nao existe, ele sugere que nao se conseguira nunca provar que tal entidade existe!" ( o ultimo nao tem que sair para que haja sentido... desculpa a pressa da escrita...
Muito boa entrevista....importante saber que o livro é nada mais que a opinião de Saramago sobre a Humanidade....
Anselmo
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